A gestação e o parto de Bia* foram complicados, cercados de muita atenção e cuidados. Desde sempre Bia teve toda a atenção e cuidados para que sempre estivesse confortável.
A mãe de Bia nunca acreditou nos limites que alguns profissionais tentaram impor à sua filha. Sim, a aparência do bebê, depois da criança, da adolescente e da adulta não eram convencionais. Ela depende de cuidados de terceiros para as coisas mais elementares, como coçar seu nariz. Nunca conseguiu sustentar seu pescoço, seu corpo faz movimentos involuntários ficando endurecido sem aviso prévio. Não é capaz de manter ou deglutir, sistematicamente, sua própria saliva, por isso usa constantemente um babador e seu cuidador com uma toalhinha enxuga seu rosto. Sempre que olhamos para ela não conseguimos ver frontalmente seu rosto, ele sempre está virado para o lado direito e voltado para cima. É difícil dar a mão para Bia, elas sempre estão contorcidas de uma forma, aparentemente, dolorida. Bia sempre está em sua cadeira de rodas, com seu tronco amarrado e com sua cabeça sustentada por aparadores que não permitem que ela caia para os lados, para frente ou para trás. Quem reparar em seus olhos poderá notar o espantoso brilho que reflete toda sua ternura e encantamento pela vida.
Bia e sua mãe sempre estão juntas indo a médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, odontologistas e tantos outros profissionais que acompanham Bia. Mas não é apenas para tratamentos médicos que estão juntas, sua mãe sempre leu livros, contou histórias, ensinou a língua portuguesa, estimulou a filha em outras línguas como espanhol, inglês e francês, sim, ela sempre acreditou que Bia compreende o que é falado e sempre acreditou que a filha aprende aquilo que ela ensina. Mas até aquele dia não tinha uma confirmação daquilo que acreditava. Aquele dia….esse dia ainda me arrepia e mareja os olhos quando lembro, vou contar o que aconteceu.
Aquele dia aconteceu há mais ou menos 15 anos. Durante muitos anos a mãe de Bia buscou formas para que sua filha pudesse se comunicar com o mundo e, de tanto buscar, descobriu que na Holanda haviam desenvolvido um sistema que auxiliava pessoas com mobilidade reduzida a se comunicarem. Esse sistema era composto por uma tela de computador sensível ao toque e um apontador, sim, era o começo da tela touch screen. Para Bia o apontador foi adaptado na sua orelha de forma que, com pequenos movimentos de cabeça, ela era capaz de escrever na tela. Sabem o que foi que Bia escreveu? Sim, Bia escreveu na tela à sua frente “Mãe, demorei 27 anos para dizer o quanto te amo”. E esse foi o "aquele dia", foi quando o mundo pode comprovar que a mãe de Bia estava certa, sua filha tinha limitações físicas mas não intelectuais. Bia era alfabetizada não só em português, mas em espanhol, inglês e francês, assim como sua mãe a ensinou durante tantos anos.
Eu fico imaginando quantas coisas Bia deve ter ouvido sobre sua aparência ou sobre os achismos sobre ela. Imagine o quão difícil foi para Bia ouvir calada todas as injúrias a ela dirigidas. Forte a Bia não? Quantos de nós seríamos capazes de ouvir frases como: “Ela não é capaz de nada, não compreende o que dizemos, coitadinha!” Garanto que a grande maioria das pessoas acreditaria naquilo que os outros diziam e os limites impostos pelos outros seriam incorporados, e sim, seríamos coitadinhos e teríamos pena de nós mesmos!!!! Mas Bia não, ela sabia que era capaz e acreditou em sua mãe.
Agora vem a pergunta, com que direito alguns profissionais disseram aos pais de Bia que sua filha ficaria limitada durante toda sua vida a apenas olhar o mundo? Com que direito impuseram que Bia não compreendia o que lhe era dito? Com que direito decretaram que não adiantava colocar Bia na escola pois ela não seria capaz de aprender? Com que direito queriam limitar Bia do convívio com outras crianças e privar essas crianças de conhecer a fantástica Bia? Quantas lições todos teriam aprendido com essa convivência?
Onde está realmente o limite? Qual é o limite? Se a mãe de Bia tivesse acreditado naquilo que lhe disseram, hoje Bia seria realmente apenas espectadora da vida. Quantas Bias existem por ai cujas mães acreditaram no que lhes disseram?
E você, quantas vezes você julgou o outro pela aparência? Quantas vezes você limitou o outro baseado em suposições suas? Quantas vezes olhou para uma criança e impôs, ainda que em pensamento, que a escola especial seria a única possibilidade dela? Quantas vezes você parou para pensar em quais ganhos todas as crianças tem quando convivem com a diversidade? O quão tolerantes nos tornamos quando convivemos com pessoas diferentes do que consideramos normal? Você já parou para pensar no que é normal?
*Bia é o nome fictício de uma personagem da vida real.