A história se faz a cada segundo vivido. Sem que a gente perceba, o nosso livro de história individual vai ganhando folhas de registro e mesmo que a memória não armazene todas as experiências, o resultado de cada uma delas vai nos transformando em quem somos. Ser surpreendido por uma deficiência é mais que um acontecimento transformador, é um marco divisor. Tudo o que você acredita: paradigmas, posturas, valores, são colocados à prova e invariavelmente se modificam. Foi assim que o nascimento de minha terceira filha transformou a história de minha vida em um Antes e Depois.
Costumo dizer que nasci para ser mãe, pois tudo o que se relaciona à maternidade me encanta. Crianças são minha grande paixão, sou educadora e sempre estive envolvida e interessada no universo fascinante da infância. Foi com muita impaciência que esperei seis anos de um bem sucedido casamento para receber a minha filha nos braços. Minha caçula chegou cercada de carinho enchendo nossa vida de significado. Porém, muito cedo percebi que de todas as crianças que eu convivi e acompanhei ao longo da vida, aquela era especial. Na época, ela tinha por volta de três meses e seu jeito de olhar e interagir já era muito diferente e foi preciso tempo para que meus temores fossem confirmados, meses de uma espera angustiante.
O Autismo é um Transtorno Global do Desenvolvimento. Para explicá-lo, gosto de comparar o desenvolvimento infantil à construção de uma casa em que falhas na base podem comprometer de forma permanente a sua estrutura. Não se torna inviável, mas para sempre estará marcada como uma casa diferente, talvez não seja capaz de receber um segundo pavimento, mas será perfeitamente passível de se tornar um aconchegante lar.
O Autismo se manifesta, por falhas no desenvolvimento da criança que podem ser sutis ou evidentes e quanto mais cedo compuserem o diagnóstico, melhor o prognóstico. Porém, é cercado por mitos que dificultam o diagnóstico precoce, uma vez que não existe um exame físico que o confirme. Como é comportamental, necessita de um olhar muito atento para distinguir as alterações e é também necessário um profissional que seja capaz de assinalar um conjunto de características que são, ao mesmo tempo, comuns e variáveis. Os graus do Autismo são muitos e os sintomas se combinam de forma diferente em cada indivíduo.
Desta forma, minha filha, que tem um jeito muito peculiar de ser, confundiu bastante os profissionais, pois ela é muito sociável, embora seja uma interação diferente. Ela não consegue, por exemplo, conduzir um diálogo, pergunta muito, não espera a resposta, não responde adequadamente e exige muita paciência quando se apega a um objeto da outra pessoa e só quer falar daquilo ou tomar o objeto para si. Ela reage muito mal às frustrações e não entende regras sociais. Foi necessário que eu buscasse informação e apoio de outros pais tanto para consolidar o diagnóstico quanto para aceitar que o Autismo imprimisse uma nova realidade em nossas vidas.
Tive que esquecer o medo de chamar atenção em público, pois as birras eram constantes, assim como gritos e reações repentinas de agressão. Ao ver uma criança linda sem nenhum traço físico que a diferencie – pelo contrário, a maiorias das crianças com Autismo são bonitas – as pessoas atribuem aquele comportamento inadequado como sendo falta da educação. E os olhares de desaprovação, fazem com que a gente repense o valor que damos à aprovação social.
Quando já não ligava tanto para o que os outros pensam, após brigar com grandes especialistas pelo diagnóstico, quando fui capaz de enfrentar a dor de me tornar uma nova pessoa, comecei a construir uma nova vida. Estudei muito, embora quase tudo o que eu lia confirmavam o quanto minha filha era diferente, pois as características listadas em livros e sites, não descreviam a minha filha e por isso, percebi que eu mesma teria que ser a especialista em autismo, mas no autismo da minha filha. Mobilizei outros pais, montei um blog, fiz pós-graduação e ajustei as minhas lentes para este novo olhar.
A minha história de vida pode ser dividida em antes e depois do Autismo, mas também posso descrever o pós autismo como uma fase melhor em um mundo de novos significados, posso pensar no quanto acontecimentos antes “pequenos” são comemorados como conquistas formidáveis e como consigo ser muito feliz com muito pouco.
Enfim, da superação surge uma nova pessoa, assim como do confinamento de um casulo surge a borboleta. Voamos felizes neste mundo de diferenças sabendo que a leveza de hoje se deve ao fato de termos nos livrado do peso de ser normal. E a cada desafio superado, nos tornamos mais fortes para alçarmos vôos cada vez mais altos e cada vez mais plenos.