Escolas e escolhas

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Morgana Siqueira tinha dois anos de idade quando sua professora da creche percebeu algo diferente. Enquanto brincava no parquinho, a criança nunca atendia quando era chamada. Na verdade, Morgana simplesmente não se comunicava sem olhar para os lábios de seu emissor. A constatação ainda precoce da professora serviu de base para o diagnóstico de surdez profunda congênita e bilateral, deficiência auditiva severa gerada, entre outros fatores, por complicações na gestação.
 
Hoje, com 37 anos, Morgana, lembra da trajetória difícil à qual foi obrigada a passar para interagir com um mundo movido pela comunicação. Com apenas cinco anos, ela colocava a mochila nas costas e atravessava a muralha do muro escolar. O que para muitos alunos era um ambiente acolhedor e divertido, para ela era um país desconhecido, de gente que não falava a sua língua. “Já imaginou uma criança brasileira de cinco anos tentando aprender mandarim? Eram assim as minhas aulas de português”, conta – agora fluente em sua língua materna.
 
Passados mais de trinta anos, alunos com deficiência como Morgana ainda continuam à margem de um sistema de ensino eficiente, que lhes ofereça ferramentas para seu pleno desenvolvimento intelectual, bem como o prazer de uma convivência saudável com outros alunos. Realidade triste e que contraria uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) correspondente ao período entre 2001 a 2010, que estabelecia o prazo de cinco anos para a adaptação das escolas de todo o país. Isso quer dizer que todos os alunos, tenham eles ou não uma deficiência, já deveriam ter acesso a recursos pensados para suas condições de aprendizado.
 
Ainda segundo o PNE, no que diz respeito a educação inclusiva, a meta é universalizar o ensino brasileiro, incluindo alunos com deficiência na rede regular de ensino. No entanto, não há como garantir que este processo de inclusão aconteça, quando apenas 12% das instituições de ensino fundamental oferecem condições de acesso para alunos com deficiência nos anos iniciais, segundo os dados do Censo Escolar 2010.
 
Diante desta contradição me pergunto se estamos preparados realmente para extinguir as escolas especiais do País. Não se ensina ninguém a pescar sem a vara. Pois bem, sem acessos conseguiremos fazer inclusão? Devemos abolir as escolas especializadas na educação dos surdos se não investimos, sequer, na formação de intérpretes de LIBRAS?
 
Pensar em incluir o aluno com deficiência na rede regular de ensino é um avanço positivo no que diz respeito à reflexão sobre os nossos direitos. É um passo bem dado para melhoria de políticas públicas inclusivas.
 
Contudo, precisamos sair do status de eterna discussão: já provamos nosso compromisso com a sociedade, como qualquer outro cidadão. Eu sou prova disso e luto para que outras pessoas também o sejam. Outras Morganas precisam ter escolhas, bem como outras Maras.
 
A aluna surda, que se isolava na sala de aula, não ouvia seus colegas, tampouco queria ser ouvida, pois sentia-se diminuída por conta de sua dicção “diferente”. Passou grande parte da vida escolar sozinha, enfrentando os desafios para se alfabetizar na rede regular de ensino. Chorava para aprender a ler e se acalmava nas aulas de pintura – mais para frente, a formação em Artes Plásticas veio a calhar.
 
Mas, Morgana contrariou as expectativas da sociedade sobre o seu futuro. Ela aprendeu a ousar mais: se formou em Artes Plásticas por sua intimidade quase uterina com a pintura, conheceu em uma instituição outras pessoas com a mesma deficiência e resolveu aprender LIBRAS para se comunicar com os colegas surdos. Prestou concurso Público e já trabalha há mais de dez anos no mesmo órgão. Curiosa, passou a estudar Teologia e Arqueologia depois que passou a freqüentar a igreja. Fez escolhas que lhe garantiram muito mais liberdade para, simplesmente, ser ela mesma.
 
Que escolha nosso País quer garantir para tantas pessoas com deficiência em fase de aprendizado, no auge de suas descobertas, curiosidades e desejos? Assim como Morgana, elas terão um dia o direito de fazerem suas próprias escolhas? Ou melhor, elas conseguirão sonhar e concretizar suas ambições ao mesmo tempo que outras pessoas?
 
Se tivesse tido acesso a ferramentas adequadas e professores treinados, Morgana talvez não tivesse escolhido as Artes Plásticas por lhe parecer o mais adequado. Poderia sim ser uma artista, mas por lhe parecer mais prazeroso. Também poderia ser uma jornalista, uma bancária, dançarina ou mesmo uma professora. Tenho certeza que ela teria muito a ensinar, a começar pela “arte de lidar com o preconceito”. Ela, que teve poucos amigos e oportunidades durante toda sua vida estudantil, encontrou forças para encarar uma vida inteira. Os poucos acessos lhe garantiram mais confiança para enfrentar os obstáculos além do muro da escola. Fico pensando onde mais Morgana teria chegado se tivesse tido mais escolhas. Quantos muros ela poderia ter saltado?
 
No fundo, aquela escola e aqueles alunos não sabiam, mas ter Morgana em suas vidas foi um privilégio – pena que para poucos. Termino com a triste conclusão de que pouquíssimas Morganas passarão por nossas vidas. Infelizmente, o Brasil ainda não entendeu a importância de se investir no futuro delas.

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