Despertar

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Hoje não vou falar sobre inclusão de pessoas com deficiência na escola, não vou falar sobre leis ou estratégias de inclusão, hoje vou contar uma história. Há alguns meses, um amigo me apresentou seu pintor, o Sr. Antônio. Ele é um homem pequeno, magro, surdo, chefe de família, pai de quatro filhos e faz da pintura de paredes seu sacerdócio e seu ganha pão. Foi pintando paredes que Sr. Antônio deu um lar, alimentou e proporcionou educação para seus filhos. Ele é de uma família de cinco irmãos, onde quatro apresentam perda auditiva de grau profundo, não conseguem ouvir nada, apenas sentem vibrações. Uma de suas filhas também é surda e protetizada há muito anos, ganhou o aparelho auditivo no antigo programa da Angélica, os nascidos nos anos 70 ou no início da década de 1980 irão lembrar, o Milk Shake.

O Sr. Antônio criou sua língua de sinais própria, com sinais criados por ele e compartilhados com os membros de sua família, ele se comunica com o mundo. Mas, para que ele consiga se comunicar com pessoas que não sejam de seu convívio, um de seus filhos sempre o acompanha e atua como intérprete.

Quando conheci o Sr. Antônio, não pensei duas vezes, entreguei meu cartão e pedi que ele me procurasse no consultório. A ideia de protetizar uma pessoa que não ouviu durante 54 anos era animadora. No dia marcado, o Sr. Antonio compareceu ao consultório e o grande momento chegou, o sr. Antônio começaria a ouvir. Quando liguei a prótese, um grande sorriso se abriu e ele, pela primeira vez na vida, ouviu a voz humana, a minha voz, eu sei que poderia ser uma voz mais agradável, mas era a minha que tínhamos para o momento.

Os olhos do filho ficaram marejados. Uma moto passou acelerando e ele logo olhou para a janela. O sr. Antônio estava feliz, ouvia os sons da rua, vozes e podia ouvir os sons que eu apresentava por meio do computador. Sim, foi um momento mágico e único e eu tive a certeza que minha decisão havia sido a melhor. Até a secretária se emocionou ao ver o sr. Antônio indo embora com seu grande sorriso no rosto.

Na semana seguinte, no primeiro retorno após a protetização ele me contou que podia ouvir o choro dos netos, algumas vozes de sua casa, os barulhos da rua. Sim, um novo mundo estava sendo apresentado para ele. Mais uma semana se passou, novo retorno, e o Sr. Antônio não estava mais tão feliz. Ele disse que o mundo era muito barulhento e muitas vezes ele queria simplesmente tirar suas próteses. Pedi para ele abaixar o volume para poder se acostumar com o novo estímulo. Ah, esqueci de contar, resolvi também que o Sr. Antônio deveria falar, para isso, terapia. As sessões começaram, até que um dia ele me disse que não queria falar, ele não precisava, tinha vergonha. Confesso que me senti frustrada, mas respeitei a vontade dele.

Você, por favor, feche os olhos por alguns minutos, desligue o computador, a televisão, largue o jornal e siga comigo: você tem 54 anos e nunca ouviu. De repente, alguém resolve que viver sem ouvir não é correto, te coloca próteses auditivas e te larga em um mundo barulhento, com muitas buzinas, motos que aceleram, carros turbinados e com grandes alto falantes que gritam sons ininteligíveis. Como você se sentiria?

Lembre-se, até hoje o mundo que vivia era silencioso e quem gritava mais alto eram seus pensamentos. Suas estruturas de aprendizagem eram baseadas em conexões cuja audição não estava presente. Você precisa aprender a aprender de novo.

Esse episódio me fez lembrar do filme “A Primeira Vista”, dirigido por Irwin Winkler e baseado na história real do Dr. Oliver Sacks (autor de Tempo de Despertar). Estrelado por Val Kilmer no papel de Virgil Adamson, cego desde criança e que trabalha como massagista em um spa. O personagem conhece Amy Benic (Mira Sorvino), arquiteta, que estava certa que a vida de Virgil melhoraria muito com uma operação para restaurar sua visão. Virgil convivia com a deficiência visual desde a infância e percebia o mundo através das sensações e dos outros sentidos. Com a visão, novas formas de percepção de mundo precisaram ser estabelecidas.

Assim como Virgil, o Sr. Antônio percebia o mundo através de sensações apuradas de seus outros sentidos e ele desenvolveu várias habilidades que supriam sua falta de audição. Seu Antônio e Virgil construíram suas referências de mundo sem um de seus sentidos. Adquirir esse novo sentido exige nova forma de reconhecer o mundo, novas formas de construir a aprendizagem.

Claro que aqui não estou afirmando que devolver o sentido a uma pessoa que o perdeu ou nunca teve seja errado, claro que não, mesmo porque se assim o fizesse eu estaria indo contra tudo aquilo que acreditei durante toda minha vida. Eu somente questiono com que direito sempre achamos que sabemos o que é melhor para o outro. Como eu pude ter a certeza que falar seria imprescindível para o Sr. Antônio, ele simplesmente não quer, não sente falta e não precisa disso para viver, ele tem vergonha de falar. O imediatismo que esperamos das reações humanas não existem, hoje ele gosta de ouvir e entende que, mesmo por uma questão de sobrevivência, ouvir é fundamental. 

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