Pedro é um menino muito bonito e proporcionalmente quieto. Sempre mantém uma conduta discreta e prefere ficar sozinho. Algumas vezes, na hora do recreio, Pedro fica sentado em um banco olhando para o nada. Sua mãe nunca sabe quando receberá um abraço do filho. Mas sabe que ele entende a importância de sua existência. É só questão de expressar os sentimentos de uma maneira diferente. Ela sabe e vive isto há um bom tempo. Mais precisamente, desde que Pedro completou três anos de idade. Algumas vezes, a feição distante do filho a entristece. Nada tão duradouro, pois ela sabe que seu primogênito carrega consigo um singular jeito de encarar a sua rotina diária. No fundo, a mãe sabe que a forma de Pedro amá-la é diferente da de seus outros filhos, porém muito intensa. Algumas vezes pode ser tão sútil, ao ponto de apenas ela ser capaz de perceber. Um segredo guardado pelos dois. O amor não a deixa perder a percepção afiada que possui sobre o seu filho. E isso ninguém mais precisa saber.
Certo dia, Pedro ouviu na escola a expressão “chover canivetes”. Num piscar de olhos, o menino imaginou-se em uma rua desviando desesperadamente das afiadas facas que teimavam em cair como água de chuva sobre o seu corpo. A sensação era horrível e inexplicável. A professora não percebeu, mas o garoto simplesmente não se deu conta de que a tia Adelaide usou apenas uma expressão popular do nosso idioma. Para algumas pessoas, o sentido de frases como “mamão com açúcar” e “encher o saco” é exatamente o literal. Nem todo mundo sabe, inclusive a professora do Pedro, mas pessoas com autismo têm dificuldade para compreender figuras de linguagem como a metáfora, por exemplo, uma vez que é muito difícil para elas fazerem abstrações deste tipo. Elas pensam de forma concreta. Sacou? Aliás, entendeu?
Sempre me interessei pela forma como as pessoas interagem. Pela minha formação em psicologia, por trabalhar com pessoas com deficiência, e também, por ser uma apaixonada por gente. Muito além do pensamento abstrato, existe um local em nossa mente onde reside todas as nossas vontades. Trata-se do sistema límbico, uma região do nosso cérebro onde localizam-se várias estruturas que possuem, entre outras funções, o controle de nossas emoções e desejos. Esssa característica é inerente ao ser humano. Tenha ele uma deficiência ou não.
O que realmente nos difere está na nossa cultura, idioma e uso da linguagem. Agora, se um estrangeiro não entender que “vai chover canivetes”, você não vai encará-lo como um anormal. Provavelmente, tentará explicá-lo a expressão de uma maneira literal. Afinal, a língua é um código que requer aprendizado intelectual. Com livros, professor e suporte técnico. Já a linguagem está muito além disso. Ela depende da convivência, de fatores culturais e da capacidade imaginativa de cada um. Além disso, não podemos esquecer de uma linguagem universal, que independe da educação e vivência de cada um, o respeito. Ele é compreendido em qualquer lugar do mundo.
O autismo é um distúrbio caracterizado por alterações na interação social e no uso da imaginação. Por conta disso muitos autistas são constantemente confundidos com loucos, quando na verdade só é necessário ter em mente que, antes de qualquer coisa, somos todos diferentes. Esta diferença pode ser vista não só por nossas características físicas, mas também por nossas escolhas. Optamos por cores, gostos e sons. Algumas pessoas são introvertidas, outras não. Tem gente que corre de manhã, outros só fazem levantamento de controle remoto. Tenho amigos que falam gesticulando. Eu não mexo quase nada do pescoço para baixo. E é nesta diferença que mora a graça de viver. O ato de se comunicar não é diferente. Que graça teria se todos nós gesticulássemos ou se todos gostassem de falar com os braços cruzados? O que tornaria algumas conversas momentos memoráveis? Amigos perderiam características por serem todos iguais. Pessoas não teriam identidade. E a mãe do Pedro poderia ser a do João, da Maria e de qualquer um.