Há cerca de quinze dias participei de um evento onde conheci um menino chamado Gabriel. Com seis anos, ele é irmão gêmeo do Lucas. Duas crianças lindas e iguais fisicamente. Com exceção de uma característica: o Lucas enxerga com seus olhos e o Gabriel, que é cego, vê o mundo através de suas sensações. E a cada dia ele descobre uma coisa nova, inclusive que eu tenho rodas.
Mas, o que me levou a escrever este texto não foi o fato de conhecer um menino cego cheio de curiosidades, mas sim, a relação que ele e seu irmão dividem desde o nascimento. Ao ouvir o Gabriel falar com tanto carinho do Lucas, logo pensei em diversos irmãos- gêmeos ou não- que dividem o universo da deficiência. Lembrei do meu irmão, que foi uma pessoa fundamental no meu processo de reabilitação.
Quando sofri o acidente fiquei um bom tempo no hospital sem conseguir falar. Me comunicava com o piscar dos olhos indicando as letras em uma tabela. Foi uma fase difícil, pois quem me cercava, na maioria das vezes, não me compreendia. O curioso de tudo isso é que a única pessoa que realmente entendia o que eu queria dizer era o meu irmão. Bastava eu pedir algo e as enfermeiras o chamavam. Então, lá vinha o Beto e traduzia o meu desejo em palavras. Era como se ele soubesse o que eu estava sentindo.
Diferente dos pais, que têm uma tendência mais forte em proteger o filho, o irmão acaba desenvolvendo um papel muito importante no desenvolvimento da autonomia da pessoa com deficiência. É ele que vai levar o irmão cadeirante para a balada, que vai descrever o filme e a peça de teatro para o irmão cego, e incrivelmente, traduzir os sinais do seu irmão surdo. Não é por acaso que o Gabriel falava com tanto carinho do Lucas. Provavelmente, é com seu irmão que ele divide os momentos mais divertidos na vida de uma criança.
No mês passado, em uma visita ao Parque do Ibirapuera, conheci um menino chamado João Vítor. Ele era cadeirante e tinha deficiência auditiva. Aluno da Helen Keler, escola da rede pública especializada para alunos com deficiência auditiva, ele está aprendendo LIBRAS, mas ainda apresenta algumas dificuldades para se comunicar. Advinha quem era o seu intérprete? Pois é. Era o seu irmão que o ajudava a se comunicar. E enquanto conversava com os dois, vi nos olhos do João que o vínculo entre eles ia muito além do comunicacional. Era visível a admiração que um tinha sobre o outro. Naquele momento, eles não só trocavam informações por meio da LIBRAS. Havia ali uma troca de energia, onde um era o objeto de satisfação do outro. Uma verdadeira tradução de cumplicidade.
Acredito que o irmão de uma pessoa com deficiência acaba sendo o responsável por mostrar a vida como ela é. No meu gabinete temos um exemplo disso. O Didi, um funcionário que tem síndrome de Down, foi trazido pelo seu irmão para trabalhar conosco. Ele foi o responsável por abrir esta porta na vida do irmão. Mostrou um mundo novo e falou “ agora é com você”. Hoje, o Didi vem e vai sozinho para casa, adquiriu mais responsabilidade e autonomia. Acho que por aí dá para entender a importância do papel fraternal.
No caso de irmãos de pessoas com deficiência intelectual essa relação ainda é mais intensa. Claro, é muito importante que os pais saibam trabalhar os conflitos, principalmente no que diz respeito à atenção dada para cada um. Quando este tratamento é bem trabalhado, o irmão será de valor fundamental na vida desta pessoa. Ele mais que ninguém saberá o momento exato em que o irmão está distante, quando quer brincar ou simplesmente ficar em silêncio. Por isso, é muito importante que os pais incentivem este convívio. Esta relação é única. Nenhum pai ou mãe pode proporcionar. Acredite.
Meu irmão sabia quando eu queria falar quando sofri o acidente. Mas antes ele também entendia o momento em que eu desejava contemplar o silêncio. O que quero dizer é que não foi o fato de ficar tetraplégica que o tornou um grande entendedor de mim. Seu forte senso de compreensão sobre a minha pessoa foi sendo construído desde o nosso nascimento e se fortalecendo com a nossa convivência. Por isso é muito importante que esta relação seja incentivada por toda a família.
Sei que meu irmão consegue me traduzir muito melhor que minha mãe. Esse vínculo foi construído à base de muito amor. E quem tem um irmão- com ou sem deficiência- sabe que um pedaço seu vaga em outro corpo. Sei que quando queria falar, minha voz gritava na cabeça do Beto.